Era no terreiro de chão de areia no fundo da casa onde morava com a família em Vila Isabel, Zona Norte do Rio, que Gloria Maria via sua avó paterna, Alzira, receber entidades. “As crianças não iam às cerimônias, mas às vezes os ‘caboclos’ entravam e ficavam andando pela casa. Morria de medo daquilo, me trancava no quarto e ficava escondida debaixo da cama. À medida que fui crescendo, passei a não levar aquilo muito a sério. Minha tia foi noiva por quatro anos de um homem que descobrimos que era casado. Como nenhum pai de santo viu aquilo? Eu mentia sobre as minhas notas na escola e ninguém descobria”, lembra Gloria. “Fiquei cética.” Já uma de suas bisavós por parte de mãe, Laura, tirava cartas e lia o futuro para clientes também em casa. “Eu me escondia debaixo da mesa e ficava escutando. Achava que era tudo mentira, que ela enganava as pessoas.” Gloria também foi batizada no catolicismo, fez primeira comunhão e crisma. “Minha mãe era católica. Eu também não acreditava naquelas histórias que ela e os padres contavam. Fazia muitas perguntas, sempre fui perguntadeira”, conta.
Tantas perguntas levaram a menina cética a se tornar uma das mais importantes jornalistas do Brasil. Com uma carreira de décadas à frente das telas, foi a primeira mulher negra a ocupar um espaço de protagonismo na maior rede de televisão do país, cobriu guerra, apresentou os telejornais de maior audiência da casa e viajou o mundo narrando para os noticiários como vivem diferentes povos. Foi ela quem criou a reportagem de experiência na TV brasileira, quando saltou de asa-delta com a câmera ligada da Pedra da Gávea nos anos 1980. Cravou seu estilo no momento em que fumou o primeiro baseado em um programa jornalístico em rede nacional, em um programa sobre a Jamaica, ou quando entrevistou Michael Jackson e Freddie Mercury em visitas deles ao Rio, ou ao documentar a vida dos nômades pelas areias do Saara, em acampamentos nas montanhas da Nigéria.
Gloria diz que a raiz do seu pioneirismo foi cultivada por sua avó Alzira. “Era a verdadeira chefe da família. Mal sabia ler ou escrever, mas tinha uma sabedoria incrível. E uma paixão por mim. Ela me ensinou o valor da liberdade. Quando contava histórias dos nossos antepassados, dizia que seus avós não tinham sido escravos porque foram beneficiados pela Lei do Ventre Livre, mas que um deles tinha sido laçado em Minas Gerais. Por isso, enfatizava: ‘Nossos antepassados foram acorrentados, então você não pode permitir nunca que lhe coloquem uma corrente, em nenhum aspecto da vida. Vivi com isso. Meu traçado foi ser livre”. A escolha pelo jornalismo deu-se nesse contexto. “Com 14 ou 15 anos, entendi que queria trabalhar com a palavra. Minha mãe só me matriculou na escola até o primário. Depois, era eu quem fazia a matrícula sozinha. Sempre fui independente.” Aos 16, começou a trabalhar na parte administrativa da TV Globo. Quando soube que havia uma oportunidade de estágio no Jornal Nacional, candidatou-se. Começou na radioescuta durante a noite, até que fez sua primeira reportagem em 1971.
O racismo, Gloria conta, manifestou-se em sua vida profissional. “Quando comecei a apresentar o Fantástico, recebia cartas de telespectadores: ‘Como você, uma negra, está apresentando um programa? Esse lugar é de brancos’. E aí eu tinha que olhar aquela carta 10, 15, 20 vezes. Não era um post de internet, não tinha como apagar, nem ninguém que fosse brigar por mim. Aprendi a enfrentar e nunca suportar. Dizia na cara das pessoas qual era a intenção delas quando algo desse tipo acontecia. No meu tempo era eu, meu espelho, minha resposta e minha atitude.” Sobre a entrada dos teóricos da discussão racial em sua vida, evoca o Clube Renascença, na Zona Norte do Rio, tradicionalmente frequentado por famílias negras. “Fugia da escola e ia para lá, onde nasceu o Cacique de Ramos, do qual fui rainha. Foi nessa época que o jornalista Renato Sergio, da TV Manchete, me falou de Eldridge Cleaver e Angela Davis, que li com 15 anos.”